Gary Hill: Tomando Tempo para Tomar Lugar [in Portuguese]

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Este ensaio é uma reflexão sobre a exposição de cinco instalações, com a curadoria de Marcello Dantas, “Gary Hill: o lugar sem o tempo / taking time from place,” Oi Futuro, Rio de Janeiro, 21 de julho a 6 de setembro, 2009.

Translation by Renato Rezende

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Tomando Tempo para Tomar Lugar

(Curso avançado em happenstance de Gary Hill)

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I: Entre Reflexões

Note [1]

Quando diversos trabalhos de um mesmo artista são colocados lado a lado em uma exposição, um certo anseio por narrativa e interpretação é gerado. Por que estes trabalhos estão juntos? Qual é o seu denominador comum? Há aqui algum tipo de progressão que indica um desenvolvimento no trabalho do artista? O tempo significa algo, afinal de contas—“E o que quero saber é: este artista está evoluindo, se tornando mais relevante, ou está apenas se repetindo?” A mente crítica adora compartimentar as coisas desta forma; ela de certo modo domestica o que pode haver de selvagem no trabalho (e o medo de não compreendê-lo). Mas realmente existem artistas que raciocinam de forma diferente, cujo trabalho está menos interessado em progredir (ou provar) do que em avançar—com qualquer veículo que seja. Então, que história eles contam?

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Uma não muito fácil de se contar; ou uma história que se conta performaticamente, no contexto de um “entre reflexivo”. De maneira geral, há histórias que se desenvolvem—que parecem caminhar para algum lugar, e nós alegremente as acompanhamos até suas conclusões (que infelizmente nunca duram, sejam elas felizes para sempre, ou para nunca mais). E há histórias que acontecem no ato mesmo de serem contadas—e que, no entanto, logo parecem chegar a lugar nenhum. Talvez estas aconteçam em Tempo Algum—ou seja, em um tempo da própria pessoa, à custa do tempo próprio. Um conjunto de trabalhos cujo princípio fundamental se baseia neste tipo de narração pode parecer evoluir, mas sem exatamente no sentido de um desenvolvimento. Seu avançar é menos para frente do que radial. E isto é algo difícil de ser pensado. Talvez a mente necessite tomar um tempo para si e deslocar-se—sim, sem dúvida, mas espere! Pensar desta forma já é uma maneira de por o carro diante dos bois, dizendo mais do que é preciso ser dito. Uma nova ordem de questionamento pode ser mais útil para reorientar nosso pensamento—questões que estão aprendendo a viver sem respostas, como uma pesquisa que se cultiva à beira da intensidade do puro escutar—um certo estado de não-saber.

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Neste estado talvez possamos esquecer o que gostamos. Ou mesmo o que somos. TomemosViewer (1996), a obra mais antiga da exposição: entramos numa sala escura com uma longa parede coberta por imagens de homens, em tamanho natural e nos olhando, marginalizados e desengajados, de diferentes etnias e provenientes das camadas sociais mais baixas—como se preparados para uma inspeção policial—mirando-nos e esperando ser observados, no entanto aparentemente nos observando, os espectadores (viewers). Somos nós o assunto da obra (o título se refere a nós)? Quem está sendo observado? Não sabendo quem eles são, estes estranhos parecem viver mais adiante no nosso quarteirão (na nossa rua)? E agora, como eles, encontrando-nos entre estranhos, emerge em nós o sentimento de que nós também nos reconhecemos como estranhos—aqui, neste momento, nosso próprio instante de identidade perdida? Um momento no qual o lugar onde nos encontramos está de algum modo flutuando nas fronteiras limítrofes do tempo, um pouco encurralado no meio deste mesmo espaço.

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E agora tomemos uma obra bastante diferente, uma superfície bem mais dinâmica: Wall Piece (2000). Ao adentrar a escuridão que cega—bem, há neste espaço o risco de instantânea cegueira momentânea e espasmo—poderíamos denominar isso de zona estróbica de linguagem em perigo corporal. É isto o que você vê, e escuta: a projeção na tela de um homem bem-vestido (o artista), iluminado por uma luz estróbica, repetidamente jogando-se contra a parede enquanto diz uma palavra no momento exato de colisão. Poderíamos dizer que em sua materialidade a linguagem existe de forma inseparável do impacto na parede, da palavra, da voz e do corpo. Quem bate e quem é batido? Aquele que se lança contra a parede se bate, e sua linguagem falada é encurralada, estraçalhada de fato, no meio, tornada virtualmente incompreensível. É um som penoso, uma vez que a palavra é literalmente arrancada à força. (Se este trabalho não fosse anterior às táticas da CIA da era Bush, poderíamos pensar em uma “autotortura forçada para silenciar uma linguagem autoritária”—no entanto, pensando bem, esta obra pode ser considerada algo profética, o flagelo do corpo contra a parede, como se anunciando um período de tortuosa perda de integridade da linguagem). Uma fala de alta intensidade em uma língua de ninguém. E há maiores complicações: uma lâmpada estróbica na sala, fora de sintonia com o evento estróbico previamente gravado sendo projetado, pisca na escuridão, às vezes coincidindo com a imagem projetada, o que causa a aniquilação da imagem, gerando um cancelamento da identidade ainda mais radical. O que uma lâmpada estróbica produz a outro pode retirar, da mesma maneira que a forma de expressão brutal pode tornar inacessível o que a voz cria. A tortuosa condição liminar da linguagem à beira da inteligibilidade, forçada ao ponto de ruptura, presente no meio do espaço—ou tempo, como fissura, materializada através de um fluxo que se auto-interrompe.

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Nel mezzo del cammin di nostra vita… No meio do caminho de nossa vida, como Dante começa a Divina Comédia, ou seja, na volta do inferno, e nesta visão fica inerente a passagem da linguagem, com a linguagem e através da linguagem. É esta uma viagem realizada por livre e espontânea vontade? Esta pergunta pode estar inscrita dentro de Language Willing (2002).

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Neste trabalho, um texto praticamente ininteligível, performatizado pelo poeta e compositor australiano Chris Mann, ressoa de forma binaural no espaço de exibição onde uma imagem dupla aparece na parede.[2] A enérgica recitação de frases, muito rápida e com um amplo leque de entonações extraordinárias, faz com que o texto se aproxime mais da música não-melódica do que da fala. Alguns trechos de frases são instigantemente compreensíveis, mas raramente um pensamento inteiro ou sentença o é—embora tenhamos a impressão de que o texto carrega um pensamento intricado, até mesmo complexo.[3] O ouvido nunca desiste inteiramente de compreender o jogo semântico, no entanto a atração se move no sentido de uma música estrangeira, quase como se estivéssemos escutando uma língua desconhecida. Estranho, e, no entanto, com a intensa atração de algo que se sabe através do corpo. O espectador deve continuamente reorientar sua atenção, evitar o familiar e esforçar-se no sentido do originário, como se fosse uma “fala subliminar” (ursprache).

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Vemos duas imagens separadas das mãos do artista em superfícies que se movem circularmente, e ambas estão recobrindo, seguindo e/ou revelando os padrões da superfície do papel de parede decorativo. Inescrutavelmente conectadas à performance verbal, elas parecem tentar, de forma bastante absurda, manter sua posição na superfície que se move, abarcar a situação ou manter o controle sobre as coisas—ser, se não compreensiva, pelo menos preênsil. Este método de controle da realidade faz tanto sentido quanto uma criança evitando as fissuras da calçada—um tipo de mágica corporal tardia e estranhamente abstraída. Ela atrai. O som se quebra, a roda gira rapidamente. A mente se limpa para mais uma “tentativa”.

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Language Willing é um instante de linguagem “rotatória”, ou uma linguagem axial que puxa o próprio tapete. Tentamos encontrar algum sentido nas palavras. Dizer “se a linguagem quiser” é como dizer “se Deus quiser”? Se sim, exercer nossa própria vontade sobre a linguagem é rudimentar; mais cedo ou mais tarde aprendemos que ela tem uma vontade própria. Ou: Linguagem é um estado de disposição; ela se torna mais verdadeira quando estamos dispostos a escutar. E os sentidos giratórios não param aqui, alcançando uma certa interminabilidade que leva o ato da fala para além até mesmo da auto-definição, fora do tempo da linguagem, ou numa encruzilhada com o próprio tempo.

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Happenstance, com um pensamento próprio.[4] Talvez, como escreveu William Blake, “Qualquer coisa possível de ser acreditada é uma imagem da verdade”—ou pelo menos isso pode ser o máximo a que podemos chegar, projeções faiscantes de uma perspectiva que se assemelha à verdade, e daí para a próxima. Em todo caso, realmente queremos enquadrar tal zona de uma atividade de linguagem tão ricamente corpórea transformando-a numa máxima sofisticada? Chegamos  a um argumento interpretativo, e então o que? A roda retorna ao lugar de origem, e começa tudo de novo. Ponto zero.

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Há a possibilidade de uma arte que mantêm a perspectiva em aberto, a porta da realidade encostada—o que não significa dizer que nenhum sentido é possível ou que não podemos ter uma opinião definitiva sobre as coisas, mas que temos acesso a um processo de conhecimento e de experiência não-redutivo, que não cessa na definitividade relativa. Ao contrário, é algo como um lugar de surgimento da possibilidade—um lugar no qual podemos reorientar o próprio sentido do possível. Um lugar muito próximo do limite da inteligibilidade, um portal, onde as coisas no final não fazem tanto sentido, mas nos trazem ao nosso juízo.

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II: Up Against Time

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O mais recente trabalho entre os cinco, Up Against Down, é uma instalação de seis projeções em uma única sala que inclui

uma série de imagens projetadas de várias partes do corpo do artista intencionalmente empurrando ou se forçando contra um aparentemente infinito espaço negro. Apenas poucos reflexos das partes do corpo são visíveis, mas a profundidade e a composição do espaço mantêm-se ambígua. À medida que o corpo é pressionado contra a superfície indefinida, múltiplas ondas senoidais de baixa frequência e suas sub-harmônicas são escutadas, e a cambiante tensão e força da pressão do corpo modula as ondas do som lembrando um tipo de espectro de um tamborilar primitivo.[5]

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O corpo no espaço, em total engajamento num esforço corporal para ser de uma certa maneira, obviamente um esforço pessoal total que é tão estranho em seu comportamento não-contextualizado a ponto de parecer também abstrato e não-pessoal—tais elementos caracterizam o mundo de uma fisicalidade severa, até mesmo austera, de Gary Hill. Existe uma concretude tão focada e completa em sua intensidade que chega a parecer puramente ideacional—como ideias misteriosas sendo geradas diante de nossos olhos. No entanto, é um nascimento que nunca se acaba, uma força espacialmente emergente de corporificação liberada em momento eterno. Nós a sentimos em nossos corpos atentos como energia transmitida diretamente de um evento imagético para a rede neural cérebro-espinal. Um contágio desta concentração poderosa pode indicar um reino infernal, como se tivéssemos caído inadvertidamente num círculo desconhecido do Inferno de Dante. Realmente, onde estamos nós?

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Ou quando? Seria realmente um espaço? Tal intensidade sem fim seria mais espaço do que tempo? Espaço-tempo, desde Einstein, facilmente vem à mente numa abstração que nunca realmente se alinha com a experiência—exceto, talvez, em momentos como este! Poderíamos quase dizer, nesta situação escura, “Há um cara lá em suas diversas partes, preso na frustração da sua armadilha pessoal espaço-temporal”. Para o tempo da arte, aqui há uma duração não-circunscrita, ele pode nunca mais voltar. Talvez isto diga algo sobre a razão de a eternidade não ser sempre muito bem recomendada.

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A noção de que a separação entre espaço e tempo talvez não seja aconselhável não começou com a física moderna, mas parece fazer parte das reflexões humanas desde tempos imemoriais. Tome a palavra japonesa ma, que no ideograma original chinês (kanji), mostrando o sol brilhando através de um portal, significava espaço, mas em um amplo leque de aplicações em japonês, da arquitetura à música, pode significar tanto espaço como tempo—ou ambos. Ela se refere, de fato, a entre, o intervalo, a realidade abrangente. Portanto a zona liminar incluindo as margens do espaço e do tempo, negociável de acordo com o local, a situação e a circunstância.

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Na grande obra de Kunio Komparu, The Noh Theater: Principles and Perspectives[6] —um livro de grande relevância para Gary Hill nos meados dos anos 1980—um capítulo é devotado para ma, no qual o leque de suas conotações (da arquitetura à música) prova-se fundamental para o completo e antigo fenômeno do teatro nô.

Como expressão do espaço, ma pode significar o próprio espaço, a dimensão de um espaço, ou o espaço entre duas coisas… Como uma expressão do tempo, ma pode significar o próprio tempo, o intervalo entre dois eventos, ritmo ou timing…

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Esta variabilidade, ou o que eu prefiro chamar por axialidade, sugere que no caso de ma, uma utilização que vem de longa data reconheceu que a polaridade do espaço e tempo é “polar” num sentido bastante especial. Espaço e tempo estão ao mesmo tempo separados e conectados por um pino no sentido de eixo, uma haste em comum sobre a qual eles oscilam em uma aparência “normal”, às vezes como espaço, às vezes como tempo, dependendo da perspectiva—e, em momentos repentinos e anômalos, como espaço-tempo. A física, de forma geral, concebe esta anomalia principalmente em termos abstratos e cognitivos/conceituais, enquanto que a arte (o teatro nô, como sugere a análise de Komaparu) a apresenta de forma sensorial/intuitiva, e concretamente. Sem dúvida, esta polaridade também tem um eixo velado, um ponto de oscilação no bojo de ma percebido como princípio, sugerido pela distinção arquitetonicamente focada indicada pelo subtítulo, “Ma: The Science of Time and Space.” A ciência na arte se torna indicador de uma dimensão artística da ciência—uma função liminar ao nível de ma como princípio, que emerge na dinâmica união entre ciência (como teoria ou tecnologia) e arte, e, na verdade, em uma certa indiferença para sua distinção.[7]

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Em Up Against Down, Gary Hill apresenta um atual, embora “impossível”, limiar/ma—um portal de espaço-tempo. No escuro, uma figura iluminada pressiona contra uma escuridão indefinida. O esparso reflexo da figura empurrando—cabeça, ombro, mão, pé—conclama a interface entre luz e sombra, e, no entanto, poderia ser, como parece, que um habita dentro do outro (o reflexo da figura iluminada é um artifício de sua “mirada” no escuro), ou que eles paradoxicalmente compartilham a mesma natureza, uma comunhão. Ação contrária sem completa oposição? Talvez, mas a urgência da ação que diz continuamente, “Estou fazendo isso como toda a minha força!”, indica uma profunda contenda, sem intervalos, sem alívio, sem parar. Para que fim? Não há nenhuma indicação de um fim, nenhum final, nenhuma meta, no telos, nenhuma teologia evidente. Apenas o próprio evento.

Evento? Isto significaria resultado ou eventos específicos—ou seja, física:

Um fenômeno ou ocorrência localizada num único ponto de espaço-tempo, considerado como a entidade observacional fundamental para a teoria da relatividade

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—um ponto de chegada em sua própria existência. Mas tal noção estática de evento não abarca a experiência de Up Against Down—ou até mesmo a dinâmica contrariedade do título controverso, que aponta para a energia aflitiva do que parece estar acontecendo. O modo, o happening, a—vamos dizer—happenstantiality [instantaneidade do acontecimento], ou, melhor ainda, a happenstantiation [instanciação do acontecimento]. A coisa não alivia. A pressão está ligada e vai permanecer ligada. Acontece que ela não tem fim, incansavelmente interminável—um happenstance [modo ou atitude do acontecimento] do eterno entre. No entanto, leva tempo para se ficar tão determinadamente em lugar. O ordinário no cerne do infernal impossível—como esperar pelo último ônibus da madrugada numa noite fria no fim do mundo, e ele não chega nunca.

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O tempo se infiltra no artefato, mesmo quando banido pelo movimento cíclico, a eternidade, ou alguma outra presunção de uniformidade. O tempo de observação se funde com o estado do evento, no entanto, enquanto não estiver completamente encantado terei consciência de que minha mente também está se esforçando—contra este tempo. Tento me lembrar que não sou eu quem faz todo este esforço, mas não me convenço. Há um deslize de identidade. O ma, a fissura, pode parecer uma prisão entre duas margens inalcançáveis. O estranho tempo da não realização altera o sentido de espaço—algo está sugando o espaço. O frenético esforço talvez seja demoníaco; e aquela indefinível escuridão imensurável talvez esconda um emissário vampiresco ou algum buraco negro—e aqui estamos nós na beirada, no evento horizonte, espiando o fundo do abismo. Esta é uma fantasia de desespero—e não é melhor ou pior que qualquer reivindicação de clareza ou precisão analítica ou elegância hermenêutica, aqui, neste local, nesta hora e lugar.

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Ma também engole a linguagem, ou a traduz em um gemido primordial. Aqui

múltiplas ondas senoidais de baixa frequência e suas sub-harmônicas são escutadas, e a cambiante tensão e força da pressão do corpo modula as ondas do som lembrando um tipo de espectro de um tamborilar primitivo.

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Contra o esquecimento, transmuta o dito. Uma muda concentração em estado de transe pulsa em si mesma. Também no teatro nô há sons evocativos que traduzem tempos transmogrifados—há muitos tempos ali (condensados, em deslize, em desaparecimento, revertidos, rompidos) registrando os muitos espaços dramáticos interpostos (cambiantes, oscilantes, em fluxo, expansão e contração) de espectros primordiais e temporalidades psíquicas—sons que exprimem o indizível. O tempo pressionado pressiona o espaço e o altera além reconhecimento.

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E o que este artista está fazendo diante de nossos olhos é esforçar-se contra o tempo, e contra a irremediável emergência do outro lado do tempo—o próprio vazio. O espaço pressionado é o limiar do ser/não-ser. O grande precipício. E a pessoa neste esforço total está sempre no limite da identidade, e prestes a cair no abismo, mas o próprio vigor do desconhecido resiste à contenda total com igual força.[8] E no centro da ação, o cerne hiperlocal sentido em qualquer pessoa intercalada, é o ponto sem ponto da singularidade. E todo este esforço cego, a ação que faz tudo o que pode e no final interminavelmente não realiza nada—nos expulsa, identidades fraturadas no espaço do tempo fraturado, fora do espaço de identificação, e nos aprisiona no interposto. Exatamente aqui.

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Em conclusão… bem, talvez nos sentimos um pouco pressionados agora e começamos a perder nossa predileção por grandes conclusões literárias. Um trabalho como Up Against Down deixa o próprio sentido em estado liminar. Coloca um portal no lugar do pensamento. Seja qual for sua interpretação, o fato de um artista tentar um ato aparentemente absurdo ou impossível já em si constitui um tipo de declaração. Mas esta declaração inclui o não dito e também o indizível. O que não é dito pode vir a incitar especulações, como a questão do que leva um artista a criar tal tipo de trabalho. E podemos considerar a ilimitada e inexprimível frustração e sentimento de limitação que motiva tal puro ato de ação “fracassada” como lançar-se contra o vazio. Aqui precisamos notar que, neste trabalho, o não dizer não equivale apenas a dizer em vigor bruto, é inseparável do dizer. Por analogia, uma boca que se abre para gritar, mas não produz som algum, é equivalente ao grito. Não é apenas o malogro do som, mas também uma dimensão do grito, e algo potencialmente mais intenso do que o próprio som. Podemos pensar na tela O Grito de Munch—em seu eterno momento de desespero puro, no qual nenhum som é escutado. Ou num sonho de momentânea impotência no qual o esforço para gritar torna-se ainda mais aterrorizante porque nenhum som é produzido—e congelado, ele permanece, e permanece. Há algo na ausência que é bem mais marcante do que a presença—e bem mais presente.

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Sob tal pressão o tempo parece gotejar por toda a cena como se liquefizesse o espaço ao contato—uma substância mista de viscosidade desconhecida. O espaço, tão intensamente enfrentado, martela o tempo em lâminas de ondas senoidais articuladas que carregam a observação para os ouvidos, os poros, os nervos. Que tudo seja conhecido por suas oposições, seus confrontos de escapes energéticos em uma substância de acontecimento, seus ups contra seus downs.

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Ma

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A linha de união entre espaço e tempo é um fluxo difícil. Como cristal líquido que se autoconcentra quando pressionado e reflete, ela se lembra de onde esteve e sabe exatamente o que é.

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[1] Este ensaio é uma reflexão sobre a exposição de cinco instalações, com a curadoria de Marcello Dantas, “Gary Hill: o lugar sem o tempo / taking time from place,” Oi Futuro, Rio de Janeiro, 21 de julho a 6 de setembro, 2009. A exposição inclui: Viewer, 1996; Wall Piece, 2000; Language Willing, 2002; Accordions [The Belsunce Recordings, julho 2001], 2001-02; e Up Against Down, 2008. Em alguns trechos eu recorro ao nosso livro, An Art of Limina: Gary Hill’s Works and Writings (Barcelona: Ediciones Polígrafa, 2009; apresentação de Lynne Cooke), escrito nos últimos quinze anos em colaboração com Charles Stein. Dou continuidade à premissa teórica/crítica do livro, a saber, aquilo que nós chamamos de “a vida continuada do trabalho, uma extensão da energia criativa e do interesse que o próprio trabalho projeta através de sua realidade… Em suma, é nossa intenção que nossa escrita sobre seu trabalho contribua para a possibilidade de o trabalho se abrir. A teoria é que um alinhamento crítico com um trabalho o abre, o revela para uma possível participação. A vida continuada é também um diálogo ativo com o próprio trabalho em processo”. Em geral, aqui eu escolhi focar-me em um único recente trabalho de Gary Hill (não discutido em An Art of Limina): Up Against Down, em seu premiére brasileiro, incluindo Parte II, “Up Against Time”; inicialmente escrito na ocasião do premiére americano na exposição que eu co-curei com Aaron Levy e Osvaldo Romberg na Fundação Slought, “An Art of Limina,” de 21 de março a 1º de maio, 2009.

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[2] A instalação inaugural de Language Willing na galeria Barbara Gladstone na cidade de Nova York (14 de setembro a 19 de outubro 2002) usou um sistema quadrafônico e dois projetores de vídeo, um para cada imagem; em outras exposições a imagem dupla tem sido produzida por uma projeção única e binaural. A presente exposição utiliza um monitor LCD.

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[3] O livro de Chris Mann, Working Hypothesis (Barrytown: Station Hill Arts/Barrytown, Ltd., 1998), demonstra a desafiadora complexidade do pensamento do autor, com um leque temático que vai, por exemplo, da natureza da linguagem até a opressão política. Se a sintaxe selvagem e transformativa, que lembra Finnegans Wake, dá uma impressão aparentemente contrária ao rigor do pensamento, a disjunção estética torna-se ainda maior na performance oral.

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[4] Happenstance (parte um de muitas partes) (1982-83), um dos primeiros trabalhos de Gary Hill em canal único, anuncia um princípio básico de seu trabalho como uma alegoria performática de sua própria instanciação exuberantemente imagística—um limiar de criação/descriação de imagens vídeo-sintéticas e sua não-separação do linguajar. Ao invés de fixação/representação, a imagem é um lugar de fala. Ou a linguagem é acontecimento em tempo-imagem. (Este e outros trabalhos em canal único podem ser vistos no site www.garyhill.com.) Veja o capítulo três de An Art of Limina, op. cit..

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[5] Este trabalho de 2008 é uma instalação de som e vídeo em seis canais usando seis projetores de vídeo, auto-falantes amplificados/subwoofers, seis media players assincrónos (cor; som estéreo).

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[6] “Time and Space in Noh: Apposition and Fusion,” Capítulo sete (Nova York: Weatherhill/Tankosha, 1983), pp. 70-95.

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[7] O próprio Komparu foi a princípio um ator de teatro nô dentro de uma longa linhagem familiar, que inesperadamente se voltou para a literatura, como crítico de arquitetura, e também inesperadamente retornou ao teatro nô como ator. Como alguém que cruzou e recruzou a fronteira entre duas disciplinas aparentemente incompatíveis, ele estava em boa posição para expor uma notória liminaridade dentro da própria arquitetura em sua polaridade ciência/arte—na verdade, frequentemente uma batalha. Ele faz isso em parte focando-se nos aspectos profundamente arquiteturais do teatro nô.

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[8] Depois de um pouco de observação e de pensamento fica evidente que a natureza apenas abomina o vácuo em certas instâncias, aparentemente em direta proporção com a quantidade demonstrada de tal emoção. Ela pode ser um artifício da distorcida palavra “vácuo”. Desde certas perspectivas de experiência e pensamento, o vazio—o ponto zero—pode instigar interpretações bem diferentes. Na “física do ponto zero”, por exemplo, ele é a fonte de energia ilimitada.

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